quarta-feira, fevereiro 26, 2003
FRONTEIRAS PERDIDAS
Interrogações de Um Idiota Útil
Público, Segunda-feira, 24 de Fevereiro de 2003
José Eduardo Agualusa
Idiota Útil - Não entendo o argumento segundo o qual é necessário matar inocentes hoje para salvar mais inocentes amanhã. Como distinguir o malfeitor do salvador se ambos se mostram dispostos a assassinar inocentes?
Idiota Armado - Ora, idiota, pelo número de inocentes que estamos dispostos a sacrificar.
Idiota Útil - E quantos inocentes pode o salvador sacrificar sem que seja possível confundi-lo com um malfeitor?
Idiota Armado - Temos uma tabela. Devemos ter algures uma tabela. Além disso o que conta é a intenção. É justíssimo matar todos os inocentes desde que o fim da matança seja salvar a maioria.
Idiota Útil - Isto lembra-me o conto do macaco que queria salvar o peixe. Um dia um macaco aproximou-se de um lago e viu um peixe a nadar. "Pobre animal", pensou o macaco: "está a afogar-se". O macaco decidiu então salvar o peixe. Lançou-se à água e com muito esforço conseguiu agarrar o peixe e trazê-lo para terra firme. Enquanto o peixe saltava e se contorcia, tentando voltar para dentro da água, o macaco chamou os amigos: "Vejam como está feliz o pobre animal que eu salvei de morrer afogado. Vejam como dança". Isto durou alguns minutos. Depois o peixe morreu. "Pobre animal", disse o macaco: "Morreu de alegria".
Idiota Armado - Trata-se de uma guerra preventiva, idiota, uma guerra para prevenir outras guerras.
Idiota Útil - Entendo. É como derrubar as árvores todas de uma floresta para impedir que um incêndio as destrua.
Idiota Armado - Exactamente! Não fui eu quem disse isso? Suponha que um autocarro galga um passeio e atropela um peão. Vocês, os idiotas úteis, acham que basta educar os motoristas, melhorar os autocarros e os passeios. Não adianta! Haverá sempre autocarros a galgar passeios e a matar peões, enquanto houver passeios, autocarros e peões. O que precisamos é de treinar os peões de forma a que consigam resistir ao embate dos autocarros.
Idiota Útil - E não é possível exterminar os peões?
Idiota Armado - Você acha?!...
Idiota Útil - Outra coisa que me custa a compreender é que a melhor maneira de forçar um país a desarmar-se seja ameaçando-o com um ataque.
Idiota Armado - E como havia de ser, idiota!, com carinho? Além disso precisamos de testar as nossas armas, inclusive, com sorte, as nossas armas de destruição em massa.
Idiota Útil - Não seria melhor dar mais tempo aos inspectores?
Idiota Armado - É uma perda de tempo. Se ficar provado que eles têm armas de destruição em massa, como nós, então teremos de os atacar para impedir que amanhã as utilizem. Se não ficar provado, eles terão de provar que não as têm. Se eles não conseguirem provar que não têm armas de destruição em massa seremos forçados a atacar. Assim eles não poderão utilizar essas armas amanhã. Sobretudo se não as tiverem.
Idiota Útil - Faz sentido. E porque não atacam a Coreia?
Idiota Armado - Porque esses têm realmente armas de destruição em massa, idiota!
Idiota Útil - Há quem diga que vocês só estão interessados no petróleo do Iraque...
Idiota Armado - Petróleo?! Nós queremos apenas libertar os iraquianos. Queremos que os iraquianos tenham uma democracia igual à nossa. Queremos que possam beber coca-cola e comer hambúrgueres, e ouvir a nossa música, e ver bons filmes americanos, e jogar baseball, como qualquer pessoa no mundo livre. O que está em jogo é o futuro da civilização ocidental. Veja: o Iraque está a dividir os europeus...
Idiota Útil - Foi a posição americana que dividiu a Europa.
Idiota Armado - Quem está contra nós é a velha Europa. A nova Europa está do nosso lado, incluindo Portugal e o Reino Unido. Mas não toleraremos muito mais tempo a posição da velha Europa. Há franceses que se recusam a comer hambúrgueres! Se for necessário avançaremos com uma guerra preventiva contra a velha Europa. Quem não tiver sangue nas mãos que atire a primeira pedra!
Primeira Pedra - A mim ninguém me atira!, não faltava mais nada!
Segunda Pedra - É a Intifada! É a Intifada!...
Terceira Pedra - A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, e que não significa coisa alguma. Não fui eu quem disse isto, foi Shakespeare. Eu não tenho nada a ver com a vida. Sou só uma pedra.
Idiota Útil - Acho que agora entendi tudo.
salamandrine 10:45
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